Zena, ternura num mundo em rebuliço

Zena,

Como falar-te dos sinos, do eco, intenso, mas suave, presente, mas distante, o vibrar e o estrondo, o susto e o suspiro, o alívio a subir lento a escala do sossego, porque é o despertar de um sono tranquilo, ténue e, por isso, assustador, nos dias agitados da sociedade das almas insatisfeitas. 

O estremecer das veias transportando o som até as artérias do coração que só aí se decifram as palavras que nos cantadas na língua da poesia. Tu, Zena, cantas na língua da música, na língua do amor intangível e utópico. Teu ritmo, na língua que cantas, é o corpo a mergulhar entre ondas de um vasto oceano, aparente tranquilidade, que nos é capaz de dizer as marés que se aproximam e as tempestades que nos esperam. 

Na língua e no ritmo que cantas dançam as folhas das palmeiras, tocando-se umas às outras, simulando refrões. Na língua que cantas sopram sobre as casuarinas os ventos leves do Índico. Deve compreender-te todo Oriente até ao Sul onde te fizeste chegar, para o nosso delírio incompreendido. 

Feliz és, por seres amada e dançada em toda essa incompreensão. E, por isso, a língua na tua boca é a música, o corpo de todos os nomes e linguagens. 

Cantas-nos as andorinhas, o assobio alto que se dissipa nos céus azuis enquanto fazem o voo em que o destino é onde a alma pode sossegar, no barulho sagrado da ausência. Eu choro contigo toda a saudade que cantas, porque é ainda crua a minha fé, ao ouvir-te recitar os versos como a chamada para a oração do azan ao romper da aurora. 

Todo o amor na tua voz é retrato e imaginação. Essa miséria sem que a vida seja menos que desgraça. Lamento contigo todas as angústias e sinto mais do que podem dizer-me as palavras da minha língua, as nuances e os batuques que te acompanham nesse teu canto quente e trêmulo. Vem do interior da terra todo o amálgama que te sai nas cordas vocais, és os sinos sobre os ouvidos incautos do mundo.

Lembro-te sentada, em palco, caindo-te as lágrimas de vidas passadas e futuras, para cantar-nos as tuas dores, a alegria melancólica e incompreendida, alegria líquida e volátil, que te escorria-te o rosto todo de suor, até às capulanas garidas, o corpo encurvado e os pés envelhecidos, descalços, para não deixar de sentir a terra toda a venerar-te. 

Lembro-me dos teus dias como um rio de tormentos que procuraste navegar na possível utopia. A amar como tu amavas, a viajar assim, nas estradas das nossas almas como tu viajas, não te podíamos nem em mínimas medidas, dar-te na recíproca retribuição a magia que precisavas para dias melhores. Na verdade somos angustiados a tentar não nos morrermos de dor que desconhecemos o remédio. 

Tua música, teu gingar, teu estremecer nas terminações, teu grito ligeiro e potente, a letra a sair-te lenta, os silêncios podem ouvir e dançar.  Eras o tédio necessário para as nossas marés agitadas, vidas presentes sem emoções, ilusões e loucuras. A loucura, Zena, o que é deste mundo sem ela? Os dias tranquilos e de preguiça são as razões pelas quais o povo caminha errante todos os dias. E tu davas-nos sem por isso darmos o devido valor. Estes nossos ouvidos, Zena, só sabem sorver o instante previsível das montras de luxo material onde se deposita a soberba. Ter-te, porém foi um luxo acima do que podíamos usufruir. A honestidade artística tem o seu preço, tu pagaste. 

Ainda hoje, Zena, te encontro sem coincidências. Sem que te procure. Porque és presença e permanência. Ouvir-te, nessa língua do corpo, do vento, das nuvens e do orvalho, chama-me para a vida. Queimo-me sobre o fogo da tua erupção, piso a terra descalço, enquanto corre-me apressada a vida.

Por tudo isso, Zena Bacar, cantam os sinos ou os altifalantes do nascer do sol, com as orações em jeito de música. Teu canto é sagrado, até que se compreenda porque existe o silêncio e a ternura num mundo em rebuliço.

Sobre o blog

Este é o blogue onde publico anotações que me vão na alma e no pensamento, seja em jeito de ficção ou a realidade que nos foge na agitação dos dias. Não se esqueça de me seguir em:

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