Zaida, não quero escrever-te no teu aniversário, nem do nascimento nem da morte. Não podia cair na razão do poeta que vaticinou: Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:/ Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;/ Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. Não, não tem razão o Álvaro Campos. Escrevo-te numa segunda-feira, para que sejas o princípio de tudo, da liberdade, da ousadia, da performance, da desregra, do eco, da extravagância única e exclusiva tua.
Não podia escrever-te ao domingo, no dia em que depois do Senhor criador de todas as coisas, cujos mistérios do universo, incluindo os teus, conhece e traçou o destino, ordenou o descanso, para dar lugar à veneração e temor a todo o Seu poder. Pois, então, Zaida, é por isso que também não te escrevo à sexta-feira, para que não te partilhe com ninguém, na volúpia da tua presença nos palcos que não te vi cantar, nos palcos e espectáculos, de que só ouvi o delírio de homens e mulheres e crianças que tinham a liberdade de seguir-te nas madrugadas da tua actuação para a êxtase de todas as coisas e gentes de toda a parte.
Ouvi-te ao longe, de corpo colado na ausência em pleno quarto fechado. Ouvi-te entrando às guitarradas estonteantes do teu companheiro, o homem a quem foste maior, para a grandeza dos Chongos. Não te sossegaste no por detrás, não te afinaste ao coro ensaiado, deixaste que toda a tua glória, vingasse sobre a nação inteira.
Anos se passaram desde que te foste para te deitares ao sol e celebrar em Pasárgada, para onde vai a estrita e iluminada legião de estrelas.
Fico a pensar no que te movia, mulher pacata, sem modos nenhuns para a civilização das gentes da cidade. Como pudeste, nos tempos em que não havia polémicas a alimentar a fama, os views, shares, seres presença, irreverência e permanência. Tu Zaida, mulher, ao microfone, fazias as mulheres deixarem de lavar a loiça para te ouvir e seguir por onde ecoasse a tua voz.
Tu Zaida, tornaste a vida num espectáculo maravilhoso, sem imiscuir-se de debater os dilemas sociais e, sobretudo, a moral do teu tempo, sem a tua palavra deixar de ser vaticínio para os tempos que ainda descobrimos. Dos novos assalariados das multinacionais que tinham dinheiro de sobra para o amor profano. Mulheres amaldiçoadas desde a nascença, nos rituais indecifráveis das famílias, para que vivam do prazer carnal e devaneios. Mulheres, de vida ambulante como o negócio com que alimentavam as famílias e os maridos operários, e bastardos no trabalho que só sabia dar o mínimo insuficiente para o sustento. Mulheres que a conjugação da miséria e do mágico deixavam-nas errantes, prestando o serviço do sexo ou por pré-destinação obscura ou por luxúria.
Tu Zaida, que viveste esses tempos em que podias fazer a sociedade espelhar-se na arte, sem querer impor preconceitos, modismos e tendências. Eras a tua própria voz, sem gritar nem a sossurar. Eras a voz na dose que te convinha. Eras, à semelhança dos sindicalistas e nacionalistas de toda a parte, uma activista de uma causa sem códigos de conduta, ainda difícil de compreender nesses tempos. Por outro lado a Winnie Mandela, a Makeba, a Nina Simone, e cá estavas tu, sem representações, mas exercendo a tua presença.
Tu, Zaida, antes que houvessem as “marandzas”, já alertavas para a vergonha alheia e gratuita, das relações por interesses que se sobrepõem ao genuíno amor. O que dirias, hoje, Zaida?
Eras capaz de sentar-te na esteira com a altivez com que te elevas nos palcos enormes da música. Falaste do aborto antes do sol raiar e despertarem os senhores das leis. Falaste do vazio para onde caía o conceito de família ao exigir apenas o amor como contrapartida ao amor. Cantaste o materialismo e a amizade frágil ou “manobrada pelos contextos”, como cantou Bonga.
Eras o zoom que hoje observamos como coisa nova. Cantaste a miséria que nos tira a beleza e a dignidade, que desintegra e subverte os princípios e os valores gerais de convivência, a confiança, a conivência, compromisso e solidariedade. Cantaste o peso da vida apontando os culpados.
Fico, Zaida, a ouvir-te ao longe, presença imponente e provocadora, cantando a distorção e dispersão do conceito de família, do tecido social, das mulheres que sempre foi o teu incómodo, pedindo emprego, sendo até, incisiva e apontando os nomes de quem podia e não tomava decisões. Tu, Zaida, já impunhas que um chefe do governo criasse empregos para as mulheres, por serem estas a alma da estrutura social, o equilíbrio, a lucidez e a estabilidade de numa sociedade promíscuo e inventariada para a culpa ser do silêncio dos inocentes, dos fracos e dos menos espertos. Sim, parecia contraditório como ainda parece, mas era por elas que te batias, pelo direito a uma escolha, o direito ao espaço público, o direito ao trabalho e, por conseguinte, a prosperidade das famílias por quem elas davam o seu mais íntimo valor da vida.
Tu, Zaida, antes que houvessem as “marandzas”, já alertavas para a vergonha alheia e gratuita, das relações por interesses que se sobrepõem ao genuíno amor. O que dirias, hoje, Zaida? Não te chamariam, elas, de retardada, retrógrada e machista? Olha a Paulina Chiziane, Zaida, a rainha que te terias tornado irmã nesta vida, a gerar a controvérsia numa sociedade aos extremos, segmentada entre plateias de apoiantes e acusadores e no meio os que satirizam e a arrastar as multidões para o vazio.
A violência doméstica baseada nos valores tradicionais, antes a do género, já havias denunciado, alertando para o negócio do lobolo.
Fico a pensar, Zaida, em como já te havia ocorrido, tu, menina do campo, que quando não se tem dinheiro, não se é nada. Porque infelizmente Zaida, nos dias que te escrevo, os sonhos estão à venda em “tendas dos milagres”, para não inventar palavras acima do que escreveu Jorge Amado. Fico a pensar, o que seria de ti nos nestes dias, em que terias de receber instruções milagrosas de coachs e personal branding, para dizerem-te como te posicionar, sobrepondo-se aos outros e teres dinheiro para não morrer na ausência e insuficiência.
Fico a pensar, Zaida, nos espectáculos, hoje, nas performances, em como são tão previsíveis e tensionais, fazendo com que as gentes assistam, e não vivam, que se sentem com as mãos no queixo e testa franzida, enquanto os intérpretes encenam seus passos e cantares, para depois um aplauso temperamental e só apenas cordial, no fim. Mas também, fico a pensar em como te encantarias, Zaida, deusa da liberdade, sem estátuas nem nomes de escolas, grandes avenidas ou espaços culturais, ao ver as mulheres que usufruem do espaço público que tu, abriste-lhes o caminho, sem que disso tenham consciência.
Como, hoje, a vida de várias mulheres, na música e nas outras vidas, tiveram como ponto de viragem a tua performance e postura, para viverem os dias desamarradas da vergonha, do carma da feminilidade frágil e incapaz, para serem senhoras de si. Fico a pensar, Zaida, como a arte seria hoje, sem a tua imprevisibilidade, sem a tua rebeldia, sem o teu delírio.
Em verdade, Zaida, és o mito que quero contar para as minhas filhas, como se fosse verdade. És a voz que oiço quando me ponho a pensar os nossos dias. As o remexer que abala a timidez dos meus passos. Não, não te cabem as insígnias nem títulos honoríficos, porque és nossa e o princípio de uma nova jornada neste país cultural e social, e por isso também deusa és.
Matola, 13.03.2023
Uma resposta para “Zaida, o princípio”
Ela te ouviu meu amigo…lindo texto!