O Cine África e o sonho teatral

Algures, numa das minhas vidas, fiz teatro. E sinceramente, cheguei a acreditar que era mesmo um actor, que era o senhor dos palcos, capaz de colocar em pé uma imensa plateia, aos aplausos e delírios depois de ver-me em êxtase a contracenar. E os passos que dei levaram-me a essa crença. Não era só uma questão religiosa era mesmo obra. Desde a minha quinta classe, na Escola Primária Patrice Lumumba, nos confis da Matola, até por aí, décima classe, na Escola Secundária São Dâmaso, andei em palcos e em grupos de teatro que realmente eram a principal atração nos eventos escolares. E mais, chegamos a granjear simpatias e a ganhar coisinhas interessantes, na altura, em eventos e festivais Matola a fora. Desde o festival Mogás que era uma referência na altura, aos eventos do dia do município, que muito me lembra a utopia e a forma apaixonada com que Carlos Tembe vivia a sua cidade, Matola no Coração. Chegámos a vencer a fase distrital para o festival nacional da cultura. Chegamos a fazer algumas viagens, inclusive, quando fomos conhecer as montanhas onde tombou o avião matando o papá Samora. Sinceramente, no sonho maravilhoso que vivi, acreditei mesmo que era no teatro que se fazia a vida. Cheguei a ir para um casting no Gungu, acreditem, a insanidade era tão grande, a ingenuidade é corajosa, contradizendo o meu amigo Matiangola que se referia nesses termos sobre a ignorância. Sim tenho uma ingenuidade corajosa. Ou talvez tinha, porque a dado momento e porque não passei ao casting, talvez seja, os tipos que eram encenadores foram ficando velhos para sonhar, precisavam ter certezas, ficaram polícias, professores, foram sumindo para lugares distantes, tão longe que hoje são memória. Antoninho, por exemplo, morreu poucos anos depois de ter sofrido um grave acidente de viação, uma camioneta o arrastou bem ao meu lado, enquanto falavamos de “pitas”. Os outros, outros ficaram funcionários públicos, para garantir a reforma.
Nessa ingénua e corajosa infância e adolescência, sonho mesmo era que um dia actuassemos no Cine África, a Catedral das Artes moçambicanas. Todas as vezes que subia um palco por mais raso que fosse e estivesse quase de braços com a plateia, eu sentia-me bem lá, em cima, com uma imensa plateia de cabeças levantadas e olhos arregalados, viajando no meu espectáculo. Meu irmão chegou a apresentar-se ali no Cine África, lembro-me do dia, como não podia? Não fui convidado ao espectáculo. Fiquei em casa só a imaginar enquanto lavava loiça e cozinhava. Ainda fiz vénias quando tirei as panelas do lume para me servir e comer.
Hoje passei do África, veio-me a saudade e o sonho, a angústia e a desilusão. O que o tempo e a vida fazem… o África está num silêncio sepulcral. Não dorme. Está simplesmente inerte. Indiferente. Ausente e diluido, como a outra vida que vivi… Não deixo de estar triste. Nunca, aliás, me dei conta da tristeza que me dá o Cine Teatro África, naquela ausência e Indiferença!

memorias #historiadevida

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