O corpo estendido na cama sobre um lençol branco, o quarto escuro, em silêncio apenas interrompido subitamente por grilos ou gala-galas, as lagartixas brancas, coladas às paredes, a namorar, dão vida a uma noite húmida. Mais uma em que passará tentando não encostar-se às extremidades da existência. As noites trazem-no sempre a difícil tarefa de ter de compreender a vida que tem e que não teve, o apego à essa vida presente e indefinida e uma provável morte, que também já lhe traçou os cenários.
O corpo suado, uma respiração quase encenada, para não se deixar ferir pela ânsia de um ar puro a preencher o peito e os pulmões que parecem cada vez desorientados da sua função. De olhos fechados, mas a pensar na dor que o pouco ar que respira causa no peito, e os pulmões que tem de dar vida a um homem que já não acredita, mas mantém-se entre o mundo material e carnal.
A morte, que sempre pensou nela como um acto de vingança de deus, quase de forma inevitável para si, diante de todos os infortúnios numa vida que se anuncia curta perante os seus 30 anos. Essa partida que paira sempre nas suas noites mal dormidas, parece que não chegará mandatada por algum diabo, não será por nenhum acidente, tão pouco se chamará fatalidade, antes se chamará alívio.
Nada é novo nas aflições que sente. Nesta noite as dores são as mesmas, o peito a sufocar, o corpo suado quase a inundar a cama, o dilúvio ameaça afogar o que resta do homem e das suas dores. Virá a morte de forma tão traiçoeira, com o corpo a afogar-se no próprio suor? Pensa enquanto tenta entender o estado em que se encontra, como num barco inundado e a deriva, ou como na vida que não se define, nem dormindo nem acordado.
Pensa no sono dos outros, o mundo está agora calado. E pergunta-se sobre as horas, sobre o dia, se virá o mais tardar ou de imediato. São 3h.42. madrugada a escancarar-se no seu desespero. Vira-se, deita-se de lado, com o braço direito sob o travesseiro e a cabeça sob o braço. Tem de haver ali um intermediário em busca de um conforto possível.
Olha para a mulher que dorme mesmo a sua frente. Na condição de desacordado à força, não a sente a presença da sua amada. Dorme serena, como se lhe tivesse roubado o sossego de que tanto precisa e procura. Ressona e vai fazendo gestos suaves, como se flutuasse no espaço, às vezes como uma bailarina, balançado ao ritmo do barco que navega a favor do vento.
Contempla-a. Cobiça-a. Seus lábios entreabertos, os dentes brancos fingindo uma luz.
Volta a pensar na morte, em como para si não é inesperada. Em cada suspiro o peito parece sufocar-se, falta-lhe ar, doem-lhe os pulmões que tem de se esforçar para dar-lhes mais algum tempo enquanto percorre as melhores memórias. Diz-se que a morte, antes de chegar, anuncia-se pelo riso, faz vênias aos espectadores e discursa. E o que quer este homem é antes envolver-se no corpo quente da mulher, que dorme, alheia a sua triste e dolorosa arte de partida.
Então revive a sua jornada no mundo. Em como nunca a viu assim, como no corpo da mulher ao seu lado, de tronco descoberto, com um sorriso que sai de uma boca com dentes desarrumados, porém brilhantes como diamantes que nunca viu. Mas esta boca ele beijou, saboreou, mergulhou a sua alma adentrando pela garganta até à nascente, onde vê a luz. A vida como o ar que escasseia, a esvair-se suavemente, mas indecisa e inconclusa.
Sente pontadas pelas costas, tenta deitar-se de trás. O suor já se alastra por quase todo o quarto, como se traçasse uma rota de fuga, para quem vê a morte tão perto, mas sem saber chamar-lhe pelo nome, reconhecer-lhe o rosto, abraça-la, sentar-se com ela à mesa e tomar os últimos copos de cerveja gelada. Sempre acreditou que o inferno é quente. Então fará falta a sensação da cevada fria descendo goela abaixo, espalhando-se entre as veias, refrescando a alma, como sempre fez questão de descrever em noites de baladas com amigos.