Marcados pela violência

Não cheguei a ver o que os meus pais, meus irmãos, familiares, conhecidos e desconhecidos, viram. Os horrores da guerra, o medo, o sangue, os mortos com expressões faciais distintas, as mulheres violadas diante dos seus maridos e filhos, outras forçadas ao parto por um canivete ou catana, os homens com os membros amputados, alguns sequestrados para servirem a guerra, o fogo a devorar paredes e torrando a carne viva dos bichos ou de gente. Não ouvi os gritos nem os rostos dos mortos. Mas vi as feridas dos sobreviventes sem glória, com a vida que lhes sobrou a se transformar num peso insuportável.

Tudo o que sei são histórias contadas, algumas de forma mais ficcionada quanto é possível dissolver os factos cuja crueldade, assumem os vivos, é indescritível. Sei das marcas ainda visíveis nas pessoas e nos lugares, dos edifícios em ruínas e de corpos, ainda vivos, mas com lesões de uma vida.

Não me esquecerei do pesar, do cheiro das rainhas da noite, do arrepio que passei toda infância sentido, sempre que olhava para a Sara, cuja mãe, conta-se em voz baixa para não despertar os fantasmas, teve de meter o seu bebé no pilão, tritura-lo como um grão de milho que transformado em pó mata a fome. O irmão da Sara foi farinha de milho para alimentar a fome de homens cujo terror só dava apetites insaciáveis. E depois do último grito do bebé, enquanto Sara gemia algures no quintal, a mãe foi levada para servir a outra fome dos homens, durante dias que não se conhecem. A casa até hoje é para toda a zona um cemitério onde os que ainda vivem, por mais que nos esquivemos, sentem o nosso olhar de luto e consternação, sempre que tem de ir à rua.   

Toda a infância passei fazendo uma viagem, por ano, para a casa dos meus avós em Gaza. Todo esse percurso pela estrada, as marcas da guerra, as cantinas abandonadas e destruídas, as cruzes a marcar os mortos que pouco são lembrados ou estudados, a ausência de vida nos lugares era visível e ruidosa. Todo o encanto da viagem, com as pessoas no machimbombo conversando numa língua que só os meus pais falavam em casa e que iria encontrar meus avós, tios e primos a falar em Chicumbane ou 3 de Fevereiro, pareciam sinos a tocar em honra aos espíritos que vagueiam pelas terras de Maluana.

E a guerra não acabou, os vivos ainda convalescem, numa existência inútil e degradada. São almas soterradas e agarradas a uma vida de sobras. Cães sarnentos a lamber as suas feridas.

Na Matola, onde morro, há uma zona que se define pelos que viveram o campo de horror, as catanas afiadas, as balas, as bazucas, o fogo, o grito, o fumo de gente, animais, casas e vegetações carbonizadas. A essa gente ficou-lhes o nome simbólico quanto realístico de “mutilados”. Mutilados no corpo e na alma. Sobreviventes de uma guerra sem “vencedores e nem vencidos”, diria Sophia de Mello Breyner Andresen.

Os mutilados são apenas uma face, a visibilidade do acto brutal que é o desejo de carnificina que possui a alma humana. Hoje as crianças temem esses homens, como se de monstros se tratassem. Suas conversas são a continuidade dos seus actos no espaço do conflito. Esses são os filhos da guerra. Nós somos os filhos da violência, as reminiscências, de vários conflitos. Uma violência generalizada, institucionalizada e até moralizada. Violentar é um acto moral. Se os pais não batem nos filhos, são maus quanto aquele que gerou e não criou. Um homem que não bate na sua esposa, não merecerá o respeito, nem da mulher e dos filhos que vivem consigo, nem da sociedade. Um professor que não bate no aluno, é fraco, gerou um bando de mal-educados. O professor bom é professor que bate, pune, humilha. Esse terá respeito e vai gerar bons cidadãos. Serão poucos, sim, mas serão bons. Terão sido melhores no corpo e na mente. O que é preciso para se estar preparado na vida?

Ainda me vêem os nomes, rostos aleijados e almas perdidas, de crianças e adolescentes que tiveram de tomar decisões quase na insanidade, como desistir de ir à escola, depois de violentados. Paus enormes a partirem-se pelos seus corpos duros, como as suas cabeças que não apanhavam nada das lições. Espancados, aos gritos sem socorro, com uma plateia de 50 crianças, impávida, com o coração a bater como um relógio apressado, gemendo-se de dor gratuita, outros enchendo e molhando as calças de diarreias instantâneas e mijo. E o professor com o suor a escorrer-lhe pelo corpo todo, ofegante como se o peito fosse sair pelas costelas, as mãos quase ensanguentadas de tanta força que empregaram sobre um adolescente de 13 anos, com a boca a escorrer-lhe saliva de fúria, olhar vibrante e cheio de fome de matar.

Algumas crianças, com o passar do tempo, já se riam quando uma outra caia na desgraça do professor, já saiam a correr como numa competição de atletismo, para tirar ramos maiores que a sua altura, preparando a varra da boa educação, como um escultor talha a madeira. Eles riam-se como cães, como alguém cantou.

E os anos passam…

Roberto morreu achado numa machamba onde roubava cana-doce. Estava de uniforme escolar mas há muito que não entrava na sala, nem cruzava o recinto da escola. Paulo foi para África do Sul, voltou mais tarde deportado, mais tarde morrera de overdose. Hélder até foi para a tropa, desmobilizou e passou a cafetão e vendedor de droga, agora transformado apenas em fumador e bebedor com a perna amputada, depois de ter levado um tiro em mais uma das suas fugas da polícia… ossos do ofício. Angélica, tão cedo quanto pode, andou nas barracas, teve um número desconhecido de filhos e de lares, até que foi para a África do Sul de onde nunca voltou e nem se tem notícias, com a tonelada de filhos a viverem com os avôs. Marcolino, esse até deu-se bem, tem casa própria, paga muito bem as suas contas, é alfandegário, ganha balúrdios, tem as mulheres que quer, a que escolheu para guardar em casa, espanca-a sempre que lhe apetece.

Abrir parenteses No jardim do Museu de Arte Antiga onde acabo de conhecer Ronaldo e Eltânia que também me apresentam a Kátia. A guerra e a violência chegaram na nossa conversa como chegam os convites para o café. O Homem é um animal irracional, atira Eltânia. Como é que alguém pode gastar seu tempo e inteligência criando uma arma mais perfeita que a outra para destruir? Pergunta a Kátia, com o espanto próprio de quem cria personagens de outro mundo. No nosso caso, somos filhos da guerra, afirmo. E depois do silêncio, disse ainda, a violência passou para um nível natural nas nossas vidas. Nascemos e crescemos sobre ela, superar isso é um desafio muitas vezes solitário, e os países estão ocupados com dores mais visíveis. Fechar parenteses

09.09.22, Lisboa

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