O ritual

Há momentos em que só queremos lembrar. Estar sentados, calados e deixar que a vida rode o seu filme, à sua maneira, ora para frente ora para trás. Numa tarde cinzenta como desta quarta-feira, a vida ficou neutra. E fico então a querer que a voz se insinue entre os atalhos da mente.

No quintal que agora jaz o silêncio, há ainda reminiscências da vida que se fez entre suor e dor, azares e fintas ao destino. Ainda me lembro, com vozes e cheiros, do dia em que suas lágrimas e gemidos se confundiam com o descer do precipício que já não era escuro.

Primeiro eram as mulheres que murmuravam e preenchiam os cantos da casa, de rostos mal feitos, espantando qualquer animo que se desejasse. As cabeças que não paravam de abanar em sinal de procura de alguma esperança que a cada segundo esvaia-se, nas paredes que viam um homem a sucumbir de dores, com a alma perdida nos algures da vida.

Ao fundo, desvenda-se a imagem de uma mulher, de boca trémula, lábios secos, com a gravidade dos gestos apenas aliviada pelo laranja da mulala, entre os cantos escurecidos, de onde de vez em quando vê-se o que resta dos dentes que vão ensaiando alguns cânticos. Olho para as suas mãos atarefadas, com folhas de mafurreira, braços esticados espalhando pelos ares, e batendo nas paredes, com águas cujas origens foram adulteradas pela oração. Ali se pronunciavam palavras que não sei e jamais me lembrei, sussurros que determinavam a expulsão de algum mau espírito.

Dentro da casa, onde entrei sob olhar impávido das mulheres que enchiam cada vez mais o quintal, quase perdidas nas suas lamentações sem voz, estava o homem deitado no pilão, de costas para a boca daquele objecto, contorcendo-se, de olhos fechados, revirados, com o rosto a maldizer os vivos, sob o coro de cânticos que invocavam o satanás que seria vencido, segurado pelos cornos por quem não perdoa os cobardes. Ali, quase jazia o homem já sem nome, sem pai nem mãe, apenas apegado ao que sobra entre a vida e a morte, com as mãos da mulher de branco que não parava de travar uma guerra que não sei dizer o nome. E os cânticos entre orações e gritos de ordem, aos poucos, iam dando espaço ao silêncio mais barulhento que já ouvi na vida.

Regresso ao quintal. Tomado pelo suor gelado, ainda com o cheiro dos fumos que saíam negros da sala da casa do meu pai, tomada por aquele povo de mulheres ferozes, quais combatentes de uma causa que se perde, entre a fé e a certeza de seres que disputam a alma de um homem só, já despido de escolhas.

O corpo do meu pai quase jazia, teimando em não falecer, cambaleando, deitado sobre o pilão, com os olhos embebedados, a boca entre aberta, ora franzindo os lábios, ora mostrando os dentes incompletos e enferrujados, qual aparência original de quem parece que nasceu para comer os frutos decorando os caroços com restos que escapam entre as gengivas desprotegidas. 

Entra pelo portão a quase viúva e desperta a atenção da audiência, com o barulho das dobradiças enferrujadas. Mais se parece a tradução do grito que parou as hossanas que se faziam sentir por dentro da casa. Foi entrando cambaleando, com o rosto feito o Limpopo a transbordar, arrastando consigo, gente, gado, e levando crocodilos para dentro das casas de palhas onde só sobram utensílios envelhecidos.

Tentam as mãos das mulheres acolhê-la com ordens de silêncio e calma. Que não vá o ser que ainda se espera que venha a operar milagres, aperceber-se que se chora a alma de um homem que ainda sobram sinais de vida. Mas, em vão, os olhos da mulher, estavam já derretidos, cansados de não saber como vai o dia terminar.

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