O homem que canta na janela

Quase todas as noites há um homem que canta na minha janela. Quase todos os dias, excepto aqueles que não estou. E tem vezes que mesmo de tarde o homem canta, também faz parte daqueles dias em que raramente encontro-me na residência nessa parte do dia. Ele chega com sua estrutura, uma aparelhagem de som, pega na sua viola, e toca a cantar, na maioria das vezes, música brasileira. Por vezes alguns clássicos numa língua que deve ser derivada do inglês. E no final, alguns discursos enquanto faz a percussão, e sempre, quase sempre, aplausos dos que comem e bebem no restaurante para onde ele está virado. Certamente aceitando os votos e desejos de bom apetite.

Quase todas as noites há um homem que canta na minha janela. E quase em todas essas vezes, não sou indiferente à sua presença. Só não me vou à janela para apreciar o espectáculo porque sempre calha demasiado ocupado em mexer no computador. Mas tem quase sempre a minha atenção, minha reverência, meu respeito, até quando a vontade é que, por uma avaria qualquer, as colunas se desliguem e fique apenas a sua voz e viola. E não se trata de maldades. É mesmo no espírito de interajuda e solidariedade artística. As colunas só fazem barulho. Ouvi-lo só a si seria melhor, porque os sinais de que há ali um bom artista são claros.

As interpretações que faz e a coragem que tem em fazê-lo em público, valem o crédito. Canta Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Tom Jobim, Vanessa da Mata, Ivete Sangalo, Ana Carolina, até Seu Jorge, Roberta Miranda, Alcione e outros que de tanto terem sido interpretados por outros, chegamos a pensar que ele deve ser o verdadeiro autor.

Quase todas as noites há um homem que canta na minha janela. Canções de amor, da boémia, das aventuras, música de puro prazer pela vida, ou de desgostos, mas sempre para rir. No topo do seu repertório, Martinho da Vila, e não falta Reginaldo Rossi, com o seu garçom, para o cúmulo das emoções.

Desde que sou hóspede nesta cidade que o homem faz-me serenatas. Na última noite repetiu por três vezes a música Esperando na janela de Gilberto Gil. E nas três vezes, não variou nem uma vez o tom e o ritmo. Foi mesmo a cópia do seu próprio original. Três infalíveis vezes. De certeza a ideia era só cantar por uma vez. Mas faltaram aplausos. O restaurante estava apenas com alguns clientes que não parece terem se comovido com o cancioneiro. Antes cantara uma música na variante inglesa, testando a língua dos clientes, acho. Não reagiram.

Veio Martinho da Vila, canta canta minha gente, deixa a tristeza pra lá, mas sem correspondência. Os poucos que já eram nenhuns se foram embora. Ficou apenas um casal. Devem ser italianos, pensei. Ou franceses. Devem não entender a língua em que canta o artista. Quase desci para o sugerir que interpretasse um Pavarotti, ou Andrea Bocelli, por exemplo, num estilo mais pop, ah, não me ocorreu nenhum músico francês. Daquela língua mesmo apenas Awilo Longomba, me aparece assim, das memórias distantes de uma adolescência em que só contemplei os outros a dançar.

Mas não acabaria assim a noite. Há ainda um casal por convencer entre as dezenas de cadeiras vazias. A música não tem uma língua. Então chamou o Gil. Gil é Gil, quem resiste ao Gil! Eu mesmo nesse domingo o escutei três vezes. Três vezes. É o Gil. O senhor da música brasileira em toda sua glória e majestade. Ainda me lembrarei de quando o vi em palco em Fortaleza, num concerto intimista, encerrando a Bienal do Livro do Ceará.

Quase todas as noites há um homem que canta na minha janela. Quase todas as noites o seu cantar não me passa despercebido. E desta vez, cantou a mesma música três vezes seguidas. Três vezes repetindo com a perfeição aquela que foi a sua primeira interpretação de Gilberto Gil. Na verdade, a intenção era só cantar uma vez. Mas viu-me a espreitar, finalmente, pela janela. Então decidiu fazer um bis, e mais uma, um tris. E no fim acenou com o braço e com palavras.

– Quero pedir uma salva de palmas especiais para o amigo ali, oh! – disse o homem.

E o garçom, sozinho no restaurante, aplaudiu efusivamente em minha direcção.

04.09.22

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