Na infância, andei com o meu pai, em muitas idas e voltas pela cidade, ora às regulares consultas ao hospital, ora para visitar familiares ou ainda para alguns hábitos que ficam para a reserva individual da memória. Saber guardar também é uma dádiva. Falo de guardar de verdade, reter para a minha exclusiva propriedade, já que o homem de que vos falo não vos pode contar esta parte da história. Nem esta nem outra. Ele morreu.
Muito cedo nos levantávamos para apanhar o 59 que ia do terminal do nosso bairro, Patrice Lumumba, até ao Museu, no centro da cidade de Maputo. A viagem tinha várias etapas.
Uma delas, dava-se ao sairmos de casa até à paragem. Às vezes deixava que ele saísse primeiro, quando estava obrigado a ir com ele e sem paciência para suportar a lentidão dos seus passos. Quase andando nada. O corpo não obedecia a cabeça. Ele andava quilómetros no mesmo lugar. Outras vezes, saíamos juntos. Lado a lado. Apenas com breves palavras mesmo à saída do quintal. Mas o resto do percurso de cerca de um quilómetro, multiplicado por 20, era mesmo em silêncio. Só as pessoas na rua iam quebrando a ausência de palavras entre nós. Um bom dia ali, um para onde vais acolá, um vão ao hospital, por aí a diante. Mas sempre havia uma saudação longa à moda moçambicana, pelo menos do Sul.
Uma saudação é como contar uma história, sobre como a pessoa dormiu, como toda a sua família dormiu; como acordou, como a família toda acordou; se houve sonhos maus ou bons, se alguém está doente, se chegou algum visitante em casa, se os animais, patos, galinhas, estão na sua rotina normal, se ouviu alguma coisa estranha, por aí em diante. E vai se fazendo o diálogo musicado, com gestos de aceitação, espanto, pesar, risos, sempre demonstrando interesse no que outro diz. Se estiver alguém ao lado, entre os dois que se saúdam, será dada a palavra, mas só mesmo no fim, para que reaja à tudo o que ouviu, com uma simples resposta intraduzível para a língua em que vos escrevo.
Essa pausa chateava-me. E era sempre no mesmo lugar. Sempre com as mesmas pessoas. É como se advinhassem os dias e as horas em que íamos passar por ali. As três velhinhas, uma boa imagem matinal das comadres, duas delas na varanda do seu quintal e outra, varrendo sempre o lado de fora, conversando entre si e, de repente, concentradas em saudar o meu velho. Tudo ensaiado e repetido, todos os dias. Apenas as novidades eram diferentes. Vivendo na entrada da rua, ao pé da estrada, não lhes faltava o que contar. E não vou repetir o que diziam para não me aborrecer já em adulto.
Não me esqueço das poucas vezes em que mexia na mão do velho enquanto dava uns passos para frente, e a velhinha que fazia questão de ficar muito próximo do meu pai para que não lhe escape nenhuma palavra que de imediato traduzia – sempre dizia o contrário – para as outras comadres um pouco mais distantes, na varanda aberta do seu quintal. Nessas vezes que interrompia a conversa que sempre se faz demorada e detalhista, era um cala a boca, na hora. Mesmo se fosse para avisar que o machimbombo, o autocarro que nos levará de viagem, vai partir…
Feito o percurso até à paragem, chegava a hora de subir ao machimbombo, uma outra etapa, quase uma outra fase da vida, pela leveza do momento. Primeiro segurava a porta com a mão esquerda e depois colocava o pé do mesmo lado sobre o primeiro degrau. De seguida levantava o resto do corpo com toda a força que pode. Muitas vezes sentia-se já com os dois pés por cima do primeiro degrau, e só quando relaxava o corpo percebia que o pé direito está ainda no chão. Passavam-se minutos nesse exercício até que o corpo se levantasse.
Dentro do machimbombo, sempre abarrotado de gente, sentados quase corpo sobre corpo, respirando no rosto do outro, colados uns aos outros, trocando-se os suores, os cheiros e, mesmo assim, conversando, rindo, contando-se histórias que não se sabia por onde começavam ou terminavam, trocando-se as vidas, um ânimo que não entendia de onde vinha naquele emaranhado.
As pessoas iam fazendo o caminho, mesmo assim, para que o meu pai ocupasse uma cadeira, muitas vezes mais à frente, ao lado do motorista. Aí eu gostava. Porque depois punham-me a sentar nas costas do condutor. Ou mesmo por cima de onde trocam-se as mudanças. Era muito quente, estava com as nádegas praticamente sobre o motor. Mas estava com o coração sobre as nuvens. Então me arrefecia de contente.
Ouvia as conversas todas, mas sobretudo, tinha uma vista privilegiada sobre o caminho que se faz desde o bairro até onde descíamos, ou no Hospital Santa Filomena, agora chamado Alto-Maé ou no Hospital Central, em plena avenida Eduardo Mondlane, onde a cidade se faz mágica, com prédios, lojas iluminadas com variedades nas montras, entre as quais mais apreciava os manequins.
A andar por Lisboa, no machimbombo, palavra que tenho sempre de traduzir para autocarro, vejo sentado o meu pai. Mas agora num lugar reservado para deficientes. Escuto as conversas em várias línguas. Mas várias vezes, é com o silêncio que falam as pessoas. Na paragem do Jardim de São Bento, por ali onde fica a residência do primeiro-ministro de Portugal, vêm a correr duas senhoras, com os dedos a acenar, intercetando o autocarro. Entram suspirando, e rindo às gargalhadas, mas sem fôlego, sentando-se sobre o balanço do arranque do machimbombo. E elas riem-se, comentando uma com outra sobre o esforço feito. Falam em crioulo. E volto ao meu pai, sobre todo o exercício que para si significava apanhar o machimbombo.
Dou por mim perdido. Dou por mim com as horas perdidas. Em lugares desconhecidos. Ligado ao google maps que só aqui aprendi a usar, que me informa que já estou fora do percurso. Desço desesperado. 15 minutos a pé, promete-me a tecnologia. E vai apontando, vai gritando no meu ouvido, repreende, vira agora para a esquerda, vira para a direita, a 95 metros vira para a direita. E passa o tempo, atraso-me ao encontro, peço desculpas à Mirna, que está a uma hora a minha espera e não sabe da guerra que travo com a senhora do google maps. E volta-me o meu pai, devoto de Santo António de Lisboa, e lembro-me da avenida Eduardo Mondlane, lembro-me da paragem do hospital, lembro-me, lembro-me, lembro-me e as horas passam-se entre as ruas estreitas da grande metrópole que é Lisboa, com o telemóvel na cara, com a voz que fala e não entendo, com o lugar onde devia estar passam horas e nem tenho noção que está apenas a dois paços, atravessando a rua. Agora entendo o sentido da frase, andar às voltas.
02.09.22, Lisboa
Foto: @pikist, ilustrativa.