A arte continua a ser o que é

São Jorge fica longe, no topo de uma colina, mas a fé move montanhas. Se faltam pés e pulmões que suportem a subida, vai um táxi.  

O carro move-se para cima acompanhando as pessoas em romaria. Aos poucos e poucos, à entrada do Castelo, acomula-se o público, que troca cumprimentos, sorrindo, conversando, trocando ideias, saudações e piadas à moda portuguesa, se a vida oferece limões faça-se uma limonada. Se os guardas não permitem a entrada de álcool, tome-se os gelados. Riem-se se na mesma.

Não tarda nada e vai se descobrir que santos da casa fazem milagres. Afinal há vinho lá dentro. E uns salgados. E uns doces.

No quintal de São Jorge, várias cadeiras se espalham. Uma a uma, as pessoas vão se acomodando, deitadas. Ajustam-se os cobertores para espantar o ar frio que vai soprando com a noite. Já são 22h. Vai iniciar o Fuso. O festival de vídeo arte.

Filmes curtos vão passando, um após outro, sem intervalo, mas com os devidos aplausos da plateia que na hora de contemplar tem um silêncio entusiasmante.

Cada filme denuncia a seriedade que toma o trabalho artístico. A arte é uma ciência experimental. O seu entendimento vai para além da razão. Quanto menos entende-se, parece-se no caminho certo.

Enquanto seguem os filmes, a mistura de imagens, de sons, de movimentos, da performance, da poeticidade das intervenções, do silêncio que faz parte do acto. A acção contrariando a dinâmica. Agir é não agir. Uns vão se repetindo nas acções, como se o realizador quisesse testar a paciência do mundo. O público não se importa, entra no jogo.

E penso na arte, como matéria. A arte que transporta-nos para outros silêncios. É como se, naquele momento, o corpo partisse para uma outra dimensão. É o espectador sendo o objecto artístico. Maleável. Desafiado a dar sentido e justificação às obras apresentadas. A arte pode ser força bruta. Um vazio. Os papéis se invertem. O público é desafiado a dar sentido à obra. E o artista contempla. Ouve. Vê. E não se justifica.

Deitado, como toda a gente, vagueia a minha mente. Penso na situação em que nos encontramos. Na condição frágil, de submissão perante o que se vê. Uma imagem que me leva a pensar no trabalho da arte. Que diferença faz no mundo a arte? Não será a arte um capricho humano, dos incapazes, dos excluídos do mundo normal e formal, dos preguiçosos e presunçosos? Quem é o artista? Qual é o trabalho do artista?

Num mundo em que todo o sujeito procura resolver problemas, os políticos a baterem-se na façanha de servir ao povo, os médicos que curam as dores da carne, os polícias a manter a ordem, os funcionários públicos a cuidarem que não nos falte a espera, a demora, os empreendedores tão aclamados hoje em dia, a procura de soluções para um mudo melhor, de forma pragmática, que problemas resolvem os artistas? 

Os filmes a preto e branco levaram-me de volta para a casa do meu pai. O televisor pequeno, preto e branco, cujos últimos anos de vida foram de um tratamento brutal da nossa parte. Embrutecidos pelas imagens que se negavam a fixar-se, os actores das novelas e dos filmes, quais bailarinos aos nossos olhos, ora pulando para cima, ora para baixo, com os corpos metamorfoseando-se em escala, de cima para baixo, impossível reconhece-los, não ser pela imaginação. E a hora do telejornal, sagrada para o meu pai, a missão era ainda de elevado grau de perigo com a chacina que se impunha sobre o aparelho. Ou o televisor punha-se a jeito, dando-nos as vozes sem ruidosos ou era à pancada que se resolvia o assunto. E quando as bolas brancas e as manchas pretas ressurgiam, de imediato vinham gritos de ordem: acerta o televisor. E lá na luta titânica, movendo a antena de um lado para outro, íamos procurando a posição milagrosa, que acabam sendo os nossos corpos a sofrer, minutos a fio em pé, exactamente por onde o sinal melhorou, muitas vezes, sendo com os braços suspensos.

E as pessoas não piscam. Não falam. Não mexem nos telemóveis. Não abanam sequer, se não for para reagir a uma cena inusitada que foge do meu entendimento. A Catarina, vai morrendo-se de rir. Também me rio. Mas por dentro me desespero. As cenas do filme que o título já por si é um vazio, Enigma, parecem desesperadoras. E penso na minha condição. Nas noites que não dormi porque faltava-me o ar. E penso naquela colina até ao São Jorge, que minutos antes exigiu-me que multiplicasse os pulmões, a ver se suportava a subida. Os filmes remetem para a repetição, para a vontade de invadir-se, para o mistério da voz, das paredes e de um mundo onde as relações humanas, embora exigem acções colectivas, o individualismo é uma condição dominante. Porque o todo é um conjunto de particularidades.

É a arte a desafiar a estética. A ir para além da estética que define a própria arte. O que passará pela cabeça desses artistas, ao trazer obras de tamanha complexidade, mas com uma suavidade intrigante, que instiga a ir ao encontro do que não se sabe. A arte continua a ser o que é, um dilema.

Foto: Facebook Fuso

29.08.22, Lisboa

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