O acompanhante

Dá para ouvir de longe a voz que vem leve como se imitasse o vento. Vai se fazendo ouvir puxando a alma para um lugar desconhecido, por aí, algures nas esquinas da vida. É a Elis Regina a fazer-me serenatas.

Ao entrar no espaço vazio do boteco, um cantinho carioca entre as ruas apertadas da Graça, o vazio me recebe. Seria das poucas vezes que entraria num lugar onde come-se e bebe-se sem ouvir a orquestra de talheres e vozes exaltadas, ora se engasgando entre arroz e vinho, entre um peixe e um gole de cerveja. Não faz mal, há ali uma voz que preenche todos os vazios.

E canta. E toca. Canta a voz miúda como se deixasse a tristeza para lá. Vai esboçando um sorriso enquanto afoga-se numa distante alegria de viver e de cantar. Quem canta males dos outros espanta, enquanto os seus se desconhecem. É como se dissesse que é feliz lá para onde olha de olhos fechados, como se visse no seu lugar, todos os rostos que eternizaram os hinos que canta. Algo que só ela pode sentir.

Não ia tardar que, uma a uma, grupo a grupo, chegassem as pessoas. É tarde de sábado. Dia de feijoada brasileira. A música é um acompanhante. O resto da humanidade, que preenche o lugar, vai se ocupando em tornar o mundo num lugar sem fome. Justamente. E há ainda quem peça que nos tirem tudo, mas que nos deixem a música, penso comigo, enquanto desespero pelo prato que viria alegre, recheado de simpatias. Afinal não é a música que nos move!

Toda a constelação de clássicos brasileiros é invocada com uma espiritualidade da viola e da voz que parece reverenciar a grandeza dos astros. Sem que esta voz se cale, comer é um sacrifício. Mas convém que não se cale. Preciso ouvi-la. Preciso. Então espero, venero o canto. Vou acenando. Em jeito de quem assume toda a sua fragilidade, a sua ingenuidade, a sua reverência. Saravá! Isto é mais do que música. É um segredo. Preciso ouvir e guardar. Apesar de toda a presença, só eu ficarei a saber aonde fica pasárgada. Lá onde os grandes nomes da arte, artistas de verdade, dos quais não me assemelho, são amigos do rei, quase reis. Penso em Manuel Bandeira. A impertinente vontade de pensar nos mortos quando se está feliz. Como se nos culpássemos por sorrir sobre a memória de quem deste mundo passou.

Vendo aquela voz dando o melhor de si, fazendo levitar clássicos brasileiros e contemporâneos marcantes sem que lhe mereça um único grito ou aplauso, fez-me percorrer as ruas da angústia literária. Penso nos poetas, verdadeiros artistas da vida, que podem esmerar-se em sangrias criativas, podem inventar quanto palavreado, quantos versos que lhes sejam a si próprios marcantes e lhes encha o ego, que lhes preenchem os sonhos da consagração, de serem reconhecidos na esquina, num bar, ou mesmo pelos vizinhos, que ninguém saberá dos seus veros, tampouco da dor que deveras sentem. A verdade é que, por fim, definimos a escrita como viver em constante estado de solitude. Como se a solidão fosse a catarse dos poetas. Ilustres somos, mas até que se nos enxergue o lustre, estaremos algures, de onde não poderemos voltar a ser o que éramos, quando escrevíamos os primeiros textos, o primeiro verso, as paixonetas que nunca esqueceremos, porque nunca nos foram correspondidas. Dos amores que amamos em segredo para que durassem no tempo. Nascemos sob o signo da insignificância. Da invisibilidade. Da inexistência. É a apoteose do nada, ou da angústia como vaticinou um outro poeta maldito.

De vedetas mal concebidos, terminamos lembrados apenas duas vezes aniversariamente, como disse o poeta que ninguém se lembra quando nasceu e quando morreu. Ainda que recitem incompletamente os seus versos e sem que os compreendam. O poeta é um fingidor. Mas, não, aquela voz a cantar no boteco não finge. Levita. Invocando o santo nome dos compositores imortais da música do mundo. Mas prioridade mesmo, é o feijão para alimentar a fome do mundo. A fome que nos tira tudo, tudo, incluindo a música. 

27.08.22, Lisboa

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