Dois Corpos

Pela estrada onde as pessoas passam falando em línguas estranhas, trajadas de várias cores, como de resto são os seus corpos, duas pessoas se destacam indiferentes e alheias a tudo que se passam ao seu redor. As damas que, de pé, iguais à estátua que se esconde do seu olhar, fazem honras ao Museu da Presidência da República.

Seus corpos esculturais, numa semiótica do tempo indeciso, mais ou menos intemporal, enquanto um casal com duas crianças, únicos naquele lado do passeio, entusiasma-se com toda aquela aparatosa ao mesmo tempo estranha ausência de movimento, em duas almas que certamente sentem o que sentem e pensam o que pensam; que movem-se, certamente no invisível e indecifrável território interior. Pára, o casal, contempla as damas imóveis que continuam alheias ao admirar de quem está de passagem e fala numa língua que não é de Camões. As crianças fazem perguntas. Os dois adultos perguntam-se também entre si coisas que não saberei dizer. E ficam ali numa zona da indecisão ou de ruptura, entre a contemplação e o apoderamento. Decidem-se por captar o momento, levar consigo nos seus aparelhos. Mas não disfarçam a estranheza que sentem com tamanha indiferença, quase desumana daquelas duas figuras. Estranham também o andar do resto de gente que não se comove com a indiferença, com a ausência de movimento em corpos que, apesar da farda e do chapéu a endurecer a paisagem, tem um certo charme, um certo ar de elegância e ao mesmo tempo de uma rigidez.

E sai a mão da bolsa com um telemóvel. A decisão demorou alguns segundos. Foi se levantando o braço como se pedisse permissão. Permissão concedida com uma silenciosa unanimidade das esculturas expostas, trajadas de botas pretas, calças brancas ajustadas ao corpo, traçando o caminho entre as pernas e a cintura, as luvas brancas nas mãos fazem o traçado sobre essa cintura por onde está suspensa uma espada e um cinto, segurando o casaco azul, com um chapéu com os pelos que se parecem cabelos loiros a descair sobre os obras.  

E tiram a selfie. Vêem que não acontece nada. Os dois corpos continuam ali, imóveis, com os olhos mirando o horizonte. E tiram outra selfie. Agora sorrindo. Acenando. Com as cabeças intrometidas no intervalo que separa os dois corpos, ali, presentes na ausência. Olham para o resultado no telemóvel. Passam o dedo no ecrã. Uma vez. E outra vez. Mais outra. E outra. Não gostam. Seus corpos de mistura asiática e tropical não se vêem como deve ser na foto, só pode ser. Então aproximam-se mais das guardas. Agora os corpos estáticos quase entre olham-se, como se espreitando na selfie. E crac! Foi só uma vez. Visualizam a foto. Riem-se, contentam-se com o resultado. Viram-se para as esculturas humanas e acenam um provável agradecimento. Ou um adeus possível, para dois corpos que chamam a atenção dos transeuntes de todas as origens, mas querendo-se insignificantes. Será um adeus Leonor e Ester? Um adeus Maria ou Celeste ou adeus Mariana e Catarina? Quem se importa? O que dizem os nomes?
E as duas mulheres acabam de consentir com o mundo a passar diante dos seus olhos, a fazer poses, a selfar, a falar numa estranha língua, a esboçar sentimentos, quase bailando sob o seu nariz, iguais as moscas inocentes na sua inconveniência. A lei da vida fazendo sentido. Parados o mundo avança.  Enquanto isso, seus olhos estão sobre as costas de um tal Afonso de Albuquerque. Penso enquanto espero o 728 que me vai levar para Cais do Sodré. Quem deverá ser o senhor que dá as costas àqueles corpos, preferindo olhar para o rio, para os comboios que de vez enquanto quebram a monotonia dos ritmos dos peões e de ciclistas que passam além?

25.08.22, Belém

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