Para não dizer que não falei das mulheres

Podia escrever sobre Cabo Delgado. Mas custa-me falar assim das minhas dores, das minhas incompreensões e das imprecisões de quem não devia calar. Já a minha mãe contou-me da guerra civil, do que aconteceu em Gaza, do meu avó que quando todo mundo corria para o mato, ele se sentava com o seu neto pequeno, um dos meus irmãos, aquecidos por uma lareira dentro da palhota, como se esperasse a inevitável morte chegar, sem que tentasse em vão fugir de quem não se sabe porque mata e fere; porque é difícil compreender a morte de crianças, de mulheres e de homens à catanada, mesmo com uma AK47 às costas cheia de balas; já é de todo impossível aceitar a morte de inocentes que jamais compreenderão as guerras que muitas vezes são anunciadas ou recusadas na televisão, na rádio ou ainda em jornais que não chegarão a ter acesso, porque há lá fora e dentro de casa a insegurança a roçar a já intranquila vida dos dias.

Em tempos de guerra quem mata e quem defende tem quase o mesmo rosto. Quem está na guerra não sabe porquê morre ou porquê vive. Sobre Cabo Delgado só nos chegam ambiguidades, os famintos, os assustados e aterrorizados, os refugiados, desabrigados do seu próprio solo e da sua esperança. Chegam-nos imagens incompreensíveis das armas em punhos entre os que deliberam sobre a morte e o medo e os que estão para a espantar. Só que em ambos os casos causam o mesmo medo de quem só compreende as leis da vida onde ela é normal.

Hoje, excepcionalmente, escrevo à quarta-feira, mais um dia do nosso orgulho nacionalista, agora pretexto para a alegria das mulheres que sobem cada vez mais na hierarquia das agendas. São muitos os milhões em nome da igualdade e da equidade, difícil mesmo é escrever sobre porquê há convenções e códigos para se identificar um machista, podíamos falar de palavras-chaves, hoje fáceis de se detectar num simples “search”, sem se quer ler o pensamento ou a humanidade no meio das palavras; que, na verdade, hoje em muitas residências, em muitos conjuntos e conglomerados de residências, é mais um dia de festa, de capulanas, camisetas, lenços, algumas pingas para desanuviar o tédio do quotidiano do quase mesma coisa, as mulheres no bairro que são batalhadoras que muitas vezes são as maiores referências dos filhos e até dos maridos, para a prosperidade que se assiste numa sociedade “amarga” como vaticinara o poeta M.P. Bonde, não terão voz nem para falar do seu feminismo ou do seu chefismo de uma economia doméstica improvável. Não se pode prometer rebuçados a uma sociedade amarga, diz-nos o poeta manso. Justamente nos últimos tempos que tento compreender o que nos ensinam os poetas, provavelmente só a chorar as nossas dores, as nossas cicatrizes, nossas lembranças, quais mentes repetidoras de tormentos, iguais à nação que não sabe suspirar de alívio, igual às acácias de Maputo que tem de sobreviver ao mijo, igual às águas de Pemba, que se salgam à custa das lágrimas de muitos sobreviventes, quais órfãos da sua terra e dos seus ente queridos que não serão lembrados. Os nomes não os temos na memória, não os podemos dizer em voz alta, nem em voz de quem sussurra a dor que não sente. Aquelas águas promovidas em revistas de turismo, como das mais lindas do mundo, estão banhadas de silêncios de almas que vaguearão como espíritos se quer esquecidos, porque jamais existiram na nossa memória colectiva, antes as imagens das mulheres que choram enquanto renovam a vida na terra, nascendo em plena fuga para a incerteza. Hoje há quem pensa naqueles bebés que rasgam os ventres das mães, certamente com um sem vontade contrário com que emergiram no seu ventre. Serão frutos do amor? Hoje queria falar das flores, como das mulheres, mas como Vandré, surge-me a revolta dos tempos que vivo. Vem-me o nome do território ensanguentado, onde são muitos os nossos mortos e desconhecidos, onde são muitos os sobreviventes e quase irreconhecíveis de onde os vemos. Penso nas mulheres de Cabo Delgado, hoje as declarações de amor devem ser com uma flor ou uma arma na mão?

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