Monólogos da ausência

Hoje é quarta-feira. Quase podia escrever sobre o silêncio, da surdez dos esquecidos ou das flores lá fora desamparadas, dos pássaros confinados no peso da noite que vai leve para os ventos, da janela descortinada quase que desconseguindo separar a rua de cá dentro, das couves que crescem excluídas do olhar de quem as quer comer, ali, caladas, impacientes do seu crescimento, do comboio que buzina lá do longe, como se nada tivesse imposto o recolher desobrigado da noite que manda as almas silenciarem, da vitória dos grilos ou do andar livre dos dispensados do dia; mas não, não calam os barulhos de cá de dentro, a alma é um mundo obscuro, que desconheço, por isso escuto todos os movimentos da mente, como se as vozes às vezes interrompidas pelos mosquitos, nesta mesa plástica que acolhe a escrita, com a garrafa de água caída, denunciando, uma garrafa de coca-cola vazia, o copo que tapa a metade do limão cortado, resquícios de um chá da manhã de ontem, uns quantos copos e chávenas vazios, nuns jazem as sementes do limão do chá da manhã de ontem, noutros a memória do sorvete cujo sabor nunca me havia lembrado, umas cascas de bananas que vão dessecando no limiar da vida, um brinco e um lenço…

…Ia falar dos movimentos da mente, como se as vozes às vezes interrompidas pelos mosquitos, na sala silenciosa, quisessem falar-me de si, mas só de mim, e por isso precisassem mais do que nunca tirar-me a cama ao corpo. Mas agora que estou sentado não posso ouvir-me falar, porque desce pelos dedos a fúria da escrita que não deixa o silêncio falar-me do que desconheço, como por exemplo, a sinfonia harmónica que toca lá fora sem ouvintes nem espectadores. Apetecia-me assisti-la, apesar de triste é encantador, o encanto da tristeza, do choro, da lágrima, da dor, da fúria, mas também da saudade e da ausência que nunca sabemos do que realmente se trata.

Ocorre-me agora também a angústia do silêncio, mas também a sua ternura, o sorriso com que nos acompanha a esquisita lágrima brilhante que teima em cair, quanto nascente de um rio que o tempo não secou. Agora não sei porque escrevo isto, deve ser porque me anima falar assim do que não me lembro.   

Podia falar das almas que se deitam, mas este cenário, entre livros empoeirados e esquecidos, o televisor desligado, com a luz vermelha acesa, único sinal de vida, igual ao contador que vai gritando de tempos em tempos, igual as formigas que passam pela mesa, os mosquitos que cantam o som sempre incómodo quanto despertador; ao fundo um CD de Ana Carolina “ao vivo” ainda empacotado e uma lanterna comprada no chinês e que avariou sem nenhuma explicação, deixando saudade e de vez em quando, a angústia do que ainda podia ter servido, ainda a pouco havia lido no jornal, uma entrevista a Pilar Del Rio, revivendo as reminiscências da vida do seu Saramago, Nobel faz 10 anos e ainda havia lido a entrevista a João de Melo que vem aí com um novo romance. Os romances, mesmo quando em tempos de silêncios, não deixam de ser um alerta para a vida. Lá fora a noite faz a festa sem silenciar os sobreviventes, resistentes de uma luta entre a luz e as trevas da escuridão, às vezes anoitecidos de dia noutras amanhecidos de noite, quantos lá do outro lado das casas, não dormem como eu e o que lhes permite o desassossego do não descanso? A ausência ou a presença? A ansiedade ou a certeza? A lágrima ou o riso? A insónia simples e injustificada ou a incerteza do sono? Perguntar nunca havia sido uma forma de resposta, de quem tenta sem saber, falar da ausência.

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