Gabriel Chiau, tanto faz se falecer não é morrer!

Estava de pé no pequeno murro que impede os transeuntes a cruzar a casa de madeira e zinco, num asfalto que quase pede licença ao quintal de areia, na Av. Marcelino dos Santos.

De um chapéu na cabeça e um casaco axadrezado, com uma bengala na mão, vê-se o corpo de um homem que levanta a cabeça – quão rítmico é o seu gesto – para ver se vem aí alguém no meio de uma multidão que, por tradição e hábito, passa encostada pelo murro há anos.

Um homem que quis o destino que se destacasse num bairro cheio de gente e que se torna difícil olhar para um único ser sem que outro chame atenção. Eis o conhecido Chamanculo que não se verga à grande capital com assuntos da nação por resolver.

Via ali o Gabriel Chiau, com quem falei ao telefone, para um encontro em que se dariam dois acontecimentos apenas com sentido para nós dois. Conheceria em pessoa um músico que sempre intrigou-me ouvi-lo, teríamos uma conversa gravada em vídeo para publicar num canal de televisão.

Enquanto percorria a longa avenida feita de pavês, quais ventos de mudança a levarem-nos para um Chamanculo asfaltado, como nunca imaginaram os nativos, ocorriam-me na cabeça as coisas que se passam quando oiço a música de Gabriel Chiau, o homem que, não muito longe, se encontra à minha espera para conversa.

Chiau pode considerar-se um músico feliz. A sua obra era mais conhecida que o criador. As suas músicas são por aí cantadas e pouco se conhece o seu nome, uma justiça artística, que não permitiu que o autor vivesse grandes vaidades no mundo em que quem faz conta mais que o feito.

Não seja por isso. Gabriel Chiau era um homem vaidoso, estiloso e de gostos apuradíssimos. Conhecê-lo pessoalmente permitiu-me concluir isso. Um músico fora do comum, um cultor da música erudita que se colocou na boca do povo, sem que gritasse o seu nome.

As suas composições simples, escondem um estiloso compositor, um homem apaixonado por clássicos do blues e do jazz, que procurou traduzi-los para que povo compreendesse-os sem estranhar o erudito.

E ia já perto o momento do nosso encontro. Aproximei-me ao portão pintado a verde que nem foi preciso esforço para abri-lo. Estava ali Chiau para receber-me, calmo, e sempre preocupado com as pessoas que passavam pela rua, saudando alguns e acenando para outros. Sentamo-nos na varanda e trocamos palavras. Palavras simples, buscadas de longe, mas sem esforço, quase obrigando-me a falar dos seus clássicos como se recusasse a autoria das suas obras.

Entre perguntas e respostas, Chiau ia se permitindo fazer pausas para contar estórias, encenar alguns acontecimentos ou interpretar algumas músicas que definem a sua abordagem de vida. Enquanto falávamos a mente não evitava algumas ilações. Chiau canta para si, pela paixão e amor à boa música, pela alegria da vida e em poder tocar e cantar. A sua música era uma resposta à sua saudade, uma necessidade de partilhar essas todas sensações com quem lhe queira dar ouvidos. Por isso que se permite cantar com as influências do blues, mas intrometendo-se na marrabenta do povo. E as suas canções viraram hinos, sem envaidecê-lo, mas vaidoso já era. A sua satisfação vinha do que experimentava e percebia que resultava.

Morreu cantando, mas não para o povo, era de se vaticinar esse fim, nestes tempos em que tudo se virou para as cantadas crises na arte. Onde já não há ouvintes para boa música e leitores para boa ficção. E então, decidiu manter o povo embalado nos seus clássicos, sem tirar a beleza ao seu sonho. O seu trompete, os seus coros, em fim a sua orquestra, quem se reunia apenas para partilhar alegria e a paixão pela música, a boa música. E a casa de madeira e zinco de Chamanculo ali continua. Talvez um dia vá ceder para a modernidade, mas ali viveu Gabriel Chiau e cantou para si mesmo o que se tornou popular. Ainda se repete, desde que soube da sua morte daqui da casa em que se transformou asilo, repetem-se as imagens e palavras do nosso encontro. O vídeo esse que gravamos partes da nossa conversa, não existe mais, foi-se com o tempo das cassetes.

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