Emília Duarte reflecte as relações humanas… ou o que sobra delas

É o primeiro passo pelos próprios pés e sem companhia. Emília Duarte, na sua primeira exposição no CCBM – Centro Cultural Brasil-Moçambique (Abril, 2020) intitulada “Desconexão através da conexão”, coloca-se para o olhar do público sobre aquilo que se “vê” todos os dias, mas que os olhos, que estão preocupados com seus próprios egos e vaidades, não permitem tactear a realidade.


Desde a natureza… a forma das coisas, as cores, as paisagens, mas, sobretudo, as pessoas e dos seus utensílios, ou como diria Mia Couto, quase resumindo a ideia desta artista, inutensílios. O pincel e a tela de Emília são uma fotografia que nos leva ao foco do que várias vezes nos retira esse foco. A nossa relação com os espaços, os acontecimentos e os momentos e como pretendemos conservar essas memórias.

Não será o Homem, hoje, um corpo sem vida, uma caixa vazia, sem função nenhuma, quando desligado a aparelhos. O que acontece se se desliga o telemóvel involuntariamente, seja por descarga, ou por perda ou roubo. Quão desconcertados ficamos quando desligados esses aparelhos que nos retiram a espontaneidade natural dos sentidos, com os gestos e a memória humana já desconfigurada para captar e guardar esses momentos.

É a isso que nos convida a pintura de Emília Duarte, que com simples gestos de pincel, vai intrometendo-se nos hábitos que podem tirar a escassa liberdade que tanto a humanidade reclama todos os dias e que, diga-se até, as tecnologias de comunicação até são aliadas. E a artista não procura olhar para estes problemas de longe, como um corpo estranho e apático, antes pelo contrário.

“Tenho amor pela introspecção, estou sempre a reflectir sobre a minha vida e principalmente sobre o que eu vejo e porque não retratar isso, o que vejo, o que sinto?”

Também faço parte do problema, também fico ao celular, perco tempo, também comparo, então achei importante reflectir, como é que nos comportamos quando estamos com os outros. É como se quiséssemos sempre fugir da realidade”. Portanto, uma exposição que para além da contemplação do “belo” é um chamamento à reflexão, justamente nestes tempos em que as coisas primeiro acontecem, depois é que é pensadas.

Pensar nas sociedades contemporâneas, nos dilemas da modernidade, do conflito entre a ostentação e a inocente intenção de não perder no esquecimento da nossa cada vez mais frágil memória, daquele episódio que enquanto ocorria se quer nos demos conta do detalhe e da importância, porque procurávamos o telemóvel, preocupados na forma como os outros irão ver e como irão reagir, com quantos “gostos” e “partilhas” até à “viralização” dos mais bizarros acontecimentos e de imediatos analisados fenómenos sociais.

Em conversa na Galeria Portinari do CCBM, fez questão de afirmar que, de todo, os telemóveis e as redes sociais não são uma catástrofe para as gerações actuais. “Os medias sociais e os celulares não são um diabo. Podem ser muito úteis, tem coisas muito boas, tal como a comunicação rápida, partilha de informação importante”, considera para depois chamar atenção ao perigo “quando nos fixamos a coisas que não devemos, quando perdemos tempo, invés de cuidar das nossas vidas, o nosso trabalho, quando perdemos o controlo”.

Emília Duarte teve sempre na arte a essência para a sua formação, enquanto pessoa e com relevância para a profissional que se tornou. É formada em psicologia e não consegue encontrar distâncias com o que forma a sua personalidade.

“Comecei com o desenho muito mais nova. Amava desenhos animados japoneses, ‘manga’, o meu primeiro plano era ser desenhadora da animação japonesa. O tempo foi passando e comecei a envolver-me com a moda, enquanto vivia na Itália. A influência da moda foi muito grande. Prossegui enquanto estilista até a minha chegada a Maputo onde fiz trabalhos com moda e cheguei a participar no Mozambique Fashion Week.”

O direccionamento da sua alma artística para o mundo do desenho de modo não matou a artista de pincel e tela.

O bichinho do desenho, de criar estórias, a pintura começou a bater mais forte. E decidi voltar para trás, voltei a pintar, sempre tive essa veia, do desenho, sempre gostei.” Conta a artista que teve nas irmãs Nelly e Nelsa Guambe amizade necessária para despertar o monstro das telas que agora vemos nas paredes do CCBM, substituindo, não completamente, porém destacadamente, o papel e o lápis.

Nas suas telas, há um encontro para lá da provocação da reflexão em torno do material e dessa ausência humana provocada pelos aparelhos. A substituição das sensações, da contemplação e do prazer pelo contacto, pelo virtualismo que chegam a afectar as relações humanas, contrariando até a ideia conceitual de “rede social”.

Tenho amor pela introspecção, estou sempre a reflectir sobre a minha vida e principalmente sobre o que eu vejo e porque não retratar isso, o que vejo, o que sinto? Às vezes tinha questões na cabeça, coisas que sempre procuro entender. E o desafio está aí, colocar a ansiedade no papel, colocar tudo, pintar, porque não”, explica a artista quando questionada sobre o que move a sua pintura.

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